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TransAsia 235: o avião que caiu depois que o comandante ‘desligou’ o motor errado

O erro que derrubou um avião da TransAsia Pouca gente conhece a via elevada Huandong Boulevard fora de Taipei, na capital de Taiwan. Mas a avenida no leste da ...

TransAsia 235: o avião que caiu depois que o comandante ‘desligou’ o motor errado
TransAsia 235: o avião que caiu depois que o comandante ‘desligou’ o motor errado (Foto: Reprodução)

O erro que derrubou um avião da TransAsia Pouca gente conhece a via elevada Huandong Boulevard fora de Taipei, na capital de Taiwan. Mas a avenida no leste da cidade ganhou os jornais do mundo ao ser palco de um acidente trágico: a colisão entre um táxi e um avião que levava 53 passageiros e 5 tripulantes. ✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp Câmeras instaladas nos carros naquela manhã de 4 de fevereiro de 2015 flagraram o momento em que um ATR 72-600 fora de controle bateu sua asa esquerda no veículo antes de cair no rio Keelung, ao lado da avenida —43 pessoas morreram. O voo 235 da TransAsia Airways durou cerca de três minutos entre a cabeceira da pista e seu desfecho trágico, e teve consequências graves para a companhia aérea. (⚠️Esta reportagem é parte de uma série do g1 dedicada à reconstituição de acidentes e incidentes aéreos, explicando como ocorreram e quais as lições aprendidas. Ao final deste texto, veja a lista dos capítulos já publicados) Naquele dia, o comandante Liao Chien-tsung e o copiloto Liu Tze-chung fariam a rota entre o aeroporto de Songshan, o segundo maior de Taipei, para a ilha de Quemói, uma província taiwanesa que fica a poucos quilômetros da China continental. Não à toa, 31 passageiros a bordo eram chineses. Liu voava como copiloto, mas também tinha habilitação de comandante. Além deles, um outro piloto, Hung Ping-chung, estava dentro da cabine de pilotagem, como observador em treinamento. Dois comissários completavam a lista de 58 ocupantes do voo. Aquele mesmo ATR 72-600, com a mesma dupla de pilotos, havia feito a rota Songshan-Quemói e retornado, e se preparava para o terceiro voo do dia, pouco após as 10h30 da manhã. Durante o táxi em direção à cabeceira da pista, o gravador de voz do cockpit gravou uma extensa conversa entre copiloto e o piloto observador no “jump seat” (assento retrátil atrás dos pilotos, usado por funcionários autorizados, como comissários, instrutores ou pilotos em treinamento). Enquanto isso, o comandante Liao realizava sozinho as checagens pré-decolagem. O procedimento não é comum e até contraindicado: o momento é tido como importante para a segurança do voo e os dois tripulantes devem estar atentos às informações repassadas. Avião ATR 72-600 da TransAsia Airways em janeiro de 2015; aeronave se envolveu em acidente no mês seguinte Genshio/Wikimedia Commons Uma luz apagada no painel Às 10h51 no horário local, a torre de Songshan autorizou a decolagem, o comandante Liao acionou as manetes de empuxo e o ATR iniciou a aceleração na pista 10 do aeroporto. Apenas quatro segundos depois, o copiloto faz uma observação crucial a seu colega: a luz do sistema ATPCS do motor 2, que fica do lado direito da aeronave, estava apagada. ATPCS é a sigla para “Automatic Take Off Power Control System” (sistema automático de controle de potência na decolagem). Trata-se de um sistema instalado nos motores Pratt & Whitney dos ATRs que monitora o desempenho da unidade na decolagem. Caso detecte alguma anomalia, ele transfere automaticamente mais potência para o motor que está funcionando corretamente. Mais que isso: ele também coloca as pás das hélices num modo chamado Auto Feather, quando elas ficam "embandeiradas", ou alinhadas ao fluxo de ar, diminuindo o arrasto. Em compensação, as pás nessa posição não "empurram" o ar para trás e, portanto, não produzem empuxo. Tanto comandante como copiloto haviam iniciado suas carreiras na TransAsia a bordo dos modelos ATR 72-500. Liao fez seu curso de atualização para o modelo mais recente, -600, em maio do ano anterior. Ambos os modelos são considerados modernos, seguros e muito similares. O manual do ATR 72-500, porém, permite que o piloto decole com a luz do ATPCS desativada caso todos os outros parâmetros do avião estejam normais. Já no ATR 72-600, a luz apagada é um impeditivo do procedimento. Liao seguiu acelerando. Mas a investigação posterior constatou tratar-se de um erro: a decolagem deveria ter sido abortada. 21 segundos de normalidade Ainda no chão, mas já em velocidade, Liu tenta alertar o colega: “Impeditivo de decolagem”. Liao repete a expressão, mas não toma atitude alguma, a não ser ordenar: “Proceder com a decolagem”. A aviação comercial funciona com uma série de sistemas redundantes e excesso de cautela, justamente para prevenir acidentes, mesmo que alguns sistemas falhem ocasionalmente. Portanto, essa decisão do comandante não explica, sozinha, a queda do voo 235. É razoável dizer, porém, que aquele foi o início da cadeia de acontecimentos que levou ao desastre. A investigação revelou depois que o “hardware” do ATPCS do motor direito apresentava fissuras na solda – dessa forma, os sinais eletrônicos que ela enviava estavam intermitentes, por isso a luz não estava acendendo no painel. Ela só acende cerca de 10 segundos antes de a aeronave levantar voo, às 10h52 no horário local. Mais quinze segundos e o piloto automático é ativado. Parecia um voo normal até o aeroporto de Quemói. Foram apenas 21 segundos de normalidade. Às 10h52min37s, o ATPCS do motor direito, defeituoso, identifica incorretamente uma anomalia no equipamento. Ainda ganhando altitude, a apenas 365 metros do solo, o primeiro alarme soa na cabine. O sistema corta automaticamente a potência do motor direito (chamado de motor 2 pela tripulação) e ativa um protocolo que inclui o modo Auto Feather, que muda o ângulo das pás das hélices. Ao mesmo tempo, o sistema joga mais potência para o motor 1, na asa esquerda. No display central do painel de comando, um aviso aparece aos pilotos: “ENG 2 FLAME OUT AT TAKE OFF” (motor 2 apagado na decolagem). Apesar disso, a aeronave segue ganhando altitude. Tudo acontece muito rápido. Dois segundos após o alarme soar, Liao desativa o piloto automático e avisa: “Controles comigo”. Em retrospecto, a decisão é vista como desnecessária e até prejudicial: o comandante assume para si uma carga de trabalho maior, sobrecarregando o copiloto por tabela. Apenas cinco segundos após o início da emergência, Liao diz: “Vou puxar pra trás [desligar] o motor 1”. O comandante estava prestes a desligar o motor errado: ele se referia ao motor esquerdo, que funcionava normalmente. “Espere a checagem”, adverte o copiloto, possivelmente desconfiando que seu colega havia se confundido. O comandante não espera e puxa a manete de impulso do motor 1 de 75º para 66º. Liu, o copiloto, talvez não tenha percebido. Sua função como tripulante que não está pilotando a aeronave é realizar uma checagem de emergência de diversos parâmetros. Enquanto ele procede, Liao avisa mais uma vez que está diminuindo a potência do motor 1, e puxa mais um pouco para trás a manete. Alarmes soam na cabine Às 10h53min09s, o voo 235 atinge a altitude de 496 metros, o máximo ao qual ele chegaria. A partir de então, com um motor em modo “feather” e o outro funcional, mas com o comandante diminuindo cada vez mais a potência deste último, não há mais empuxo suficiente para o ATR sustentar a subida. A situação na cabine de comando, na qual os pilotos já não se entendiam, se deteriora com a ativação desenfreada de alarmes: o de estol (perda de sustentação) começa a soar, enquanto o manche vibra para indicar a perda das condições de voo. “Ok, desligamento do motor 2 confirmado”, diz o copiloto, ao completar o check. O comandante responde com um “ok”, mas segue atuando para reduzir a potência do motor 1 —o que estava normal. “Espera um pouco, isso… empuxo! Empuxo!” o copiloto afirma, mas não completa a frase. O nervosismo do comandante se agrava e ele interrompe: “Terreno à frente”. Liao dá potência no motor 2 (que está com a hélice em modo “feather” e, portanto, não gera potência) e diminui a do motor 1. “Ok, abaixe…”, insiste o copiloto, pedindo para Liao apontar o nariz do avião para baixo, procedimento de manual para recuperação de estol – mas ele é novamente interrompido, dessa vez pelo piloto observador que estava no jump seat: “Você está baixo!”. A situação, apontou a investigação mais tarde, indica uma péssima organização de trabalho na cabine. O conceito, conhecido como “cockpit resource management”, ou CRM (gerenciamento de recursos do cockpit), é vital em uma emergência. Pilotos são treinados para agir em conjunto, com noções de prioridade e de forma complementar quando há alguma situação fora do normal em voo. Estol, motores desligados, emergência declarada Para a surpresa do comandante, a aeronave não recupera a altitude. Ele não se dá conta de que está retirando potência do motor errado. O motor 1 deveria estar produzindo 82,2% de seu torque máximo, por estar atuando sozinho – mas, com a manete puxada, ele produz apenas 24,4%. Após desativar o piloto automático, Liao acumula a função de controlar o motor com a de refazer a rota do voo. A rota original previa uma longa curva à direita, mas ele agora precisa virar à esquerda para voltar ao aeroporto de Songshan, numa rota de emergência que desvia do relevo acidentado. Com a atenção dividida, o comandante faz o motor 1, plenamente funcional, entrar também em modo "feather". Apesar de já ter saído do trajeto previsto, só às 10h53min35s o copiloto anuncia a emergência para a torre de controle de Songshan. A torre recebe uma mensagem de outra aeronave e não escuta direito o pedido. Ele responde orientando o voo 235 a sintonizar na frequência do controle de decolagens de Taipei Perdemos os dois motores' O copiloto parece, então, ser o primeiro a se dar conta do que está acontecendo. “Não apagou o motor, nós perdemos os dois lados!”. A meros 166 metros de altitude, o comandante lança mão de seu último recurso: desligar e religar os motores. Mas não há mais altura suficiente em relação ao solo para se recuperar do estol. São 10h54min07, e faltam 29 segundos para o impacto. As últimas palavras ditas por Liao são gravadas às 10h54min27, quando ele percebe o erro: “Uau, puxei pra trás a manete do lado errado”. A aeronave descreve um giro em torno de seu próprio eixo, e a asa esquerda fica a 80º em relação ao solo, quando colide no táxi que passava na via expressa. O ATR finalmente cai no rio já de cabeça para baixo. Com o impacto, 43 pessoas morrem, a maioria instantaneamente. Catorze passageiros e uma comissária ficaram feridos, mas sobreviveram. Parte deles conseguiu nadar para a superfície do rio Keelung e se agarrar a destroços, enquanto outros ficaram presos em uma bolha de ar na fuselagem, salvando-se graças à chegada rápida dos serviço de resgate. Investigação e crise diplomática A queda chegou a causar um princípio de crise diplomática entre China e Taiwan, por causa dos cidadãos chineses entre as vítimas. A relação entre Pequim e Taipei é delicada: Taiwan reivindica ser o governo legítimo de toda a China, enquanto a China continental considera Taiwan uma província rebelde. Logo, porém, ficou claro que o desastre não foi proposital. A causa principal do acidente pode ser descrita como “erro humano”. Mas a expressão é imprecisa e não costuma ser apontada como a única causa de um acidente aéreo, nem mesmo quando o profissional age de forma intencional. Durante as investigações, os analistas se debruçaram sobre todo o histórico do comandante. Eles descobriram que, antes de ser contratado pela TransAsia, Liao, egresso da Força Aérea de Taiwan, tentou ser piloto do Airbus A330, uma aeronave muito maior. Ele fez o curso para o modelo entre setembro de 2009 e março de 2010, mas foi reprovado. Em sua ficha, os instrutores apontaram uma série de deficiências, como dificuldade para lidar com diversas tarefas ao mesmo tempo, consciência situacional e confiança insuficientes e mau gerenciamento de estresse. Ele finalmente conseguiu a licença para pilotar o ATR 72-500, mas, para passar de copiloto a comandante, teve dificuldades e precisou refazer a prova. Ao reprová-lo, o examinador escreveu em sua ficha que ele havia feito checagens de bordo de forma incompleta e demonstrado conhecimento insuficiente do manual de referência para emergências da aeronave. Uma das falhas era relacionada ao procedimento durante falha do motor em voo. Finalmente, ao completar a atualização para a versão -600, o instrutor anotou em sua ficha que ele demonstrou nervosismo e hesitação. “Pode precisar de treinamento extra”, escreveu o examinador, colocando em seguida diversos procedimentos que requeriam atenção – incluindo falha de motor durante a decolagem. Boa parte da responsabilidade recaiu sobre a TransAsia. A companhia aérea foi responsabilizada por treinamentos de má qualidade para seus pilotos, incluindo em quesitos como CRM. Ela também foi questionada por ter aprovado as promoções do comandante do voo 235 apesar das deficiências apontadas. Com o incidente, a TransAsia passou a ser vista com desconfiança, e não conseguiu voar por muito mais tempo. Ela fechou as portas menos de dois anos após o acidente, em novembro de 2016. Voo TransAsia Airways 235 Thalita Ferraz/Editoria de Arte g1 Queda do voo TransAsia Airways 235, na cidade de Taipei, Taiwan, em 2015 Reprodução/TV Globo g1 conta a história de acidentes e incidentes aéreos famosos ⚠️ A reportagem acima é parte de uma série do g1 dedicada à reconstituição de acidentes e incidentes aéreos, explicando como ocorreram e quais as lições aprendidas. Leia a seguir alguns dos textos já publicados: 'Sou um homem morto': como piloto do voo Ethiopian 691 desafiou sequestradores e pousou avião sem combustível no mar Japan Airlines 123: como um reparo mal feito causou um dos acidentes aéreos mais mortais da história O desastre do Concorde: como uma peça de metal de 43 cm derrubou o lendário avião supersônico e decretou sua aposentadoria British Airways 009: como um dos maiores aviões do mundo escapou por um triz de um desastre após ser atingido por ‘poeira misteriosa’ Iran Air 655: como um navio de guerra dos EUA derrubou por engano um avião civil do Irã e matou 290 pessoas O desastre de Charkhi Dadri: como uma série de erros fez dois aviões baterem em voo, na colisão no ar mais mortal de todos os tempos Air Canada 143, o 'planador de Gimli': como um piloto pousou um Boeing numa pista de corrida após voar 17 minutos sem combustível United 232, o pouso impossível: como pilotos salvaram centenas de vidas ao conseguir aterrissar avião destinado a cair